quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

DESERDADOS

"É seca sim! Seca poeira, seca desesperança, seca morte.
A terra, árvores e bichos já cansaram de lutar.
Só a gente cearense que, retirante, foge da desgraça
e ainda luta mesmo que seja pra continuar de pé ou de joelhos".
(Eduardo Campos)


Criado a partir da dramaturgia do cearense Eduardo Campos – autor de obras imprescindíveis para a compreensão do Ceará – o ballet Os Deserdados foi montado por Hugo Bianchi em 1971, tendo sido encenado pela Comédia Cearense em 1967.

Num eixo morte-vida-morte, a narrativa retrata aspectos da fome e da seca no Ceará, que desafia a resistência do povo e põe em xeque sua própria fé e a esperança de melhores dias; seca que acompanha – num martírio sem fim – a evasão dos sertanejos e castiga a tudo e a todos. Numa surpreendente trégua, a seca se transforma numa torrencial chuva, enchendo os rios e fazendo úmida a terra. "De repente, como veio, se foi: a chuva, o frescor da verdura. (...) É o castigo de Deus, povo de pouca fé – diz o beato – é seca sim!".

O texto original é marcado pelo regionalismo, mas atinge os valores universais, já que os temas focalizados acabam por analisar as facetas mais torturantes do homem, em seu vão esforço de sobreviver num estado de injustiça ou de tragédia. E essas angústias existem sempre em qualquer lugar, em qualquer tempo.

Na atual montagem, pelo Centro de Experimentações em Movimentos (CEM), a fome é apresentada como representação de nossas "outras fomes": desejos, vontades não realizadas. Usando como força interpretativa nossos anseios, desejos, fomes e sedes, o CEM cria sua movimentação a partir de uma tessitura de ladainhas, resmungos, reclamações, súplicas, como num grande cortejo de retirantes. Destaca-se nesse processo de criação a influência de "Campo Branco", filme de Telmo Carvalho, e a série "Retirantes", do artista plástico Cândido Portinari, em que a vida seca não é apenas reproduzida, mas recriada pela visão do artista.

As seqüências coreográficas exploram ao extremo o uso do espaço, mantendo uma forte relação com o chão e criando um paralelo com a relação Homem/Terra. Mudança constante de direção dos movimentos e o uso de expressões físicas retratam as dores escondidas e causadas pela negação de nossas fomes. As expressões em cena, a música, os movimentos e a palavra se fundem num grande cortejo representativo da sede e fome por humanidade. Um imaginário de dores e lamentos, um constante desfiar de súplicas.

Criado em 2002, o CEM vem desenvolvendo um projeto de formação em dança contemporânea, estimulando a criação de uma linguagem pessoal de cada integrante. A partir do encontro entre teatro e dança, cria-se um universo denso e de profundo teor humano, abordando em seus espetáculos questões essenciais para o crescimento individual de cada integrante e para compreensão da realidade. A princípio, aí está a relação imediata entre a companhia e o espetáculo Os Deserdados.




Os Deserdados
Direção e Coreografia : Silvia Moura
Assistente de Coreografia : Thiago Braga
Elenco: Thiago Braga, Felipe Damasceno, William Pereira, Tayana Tavares, Roberta Bernardo, Liana Cavalcante, Lucas Amaro, Emanuel Santos, Silvia Moura, Jesuíta Barbosa (o Beato) e os retirantes interpretados por Felipe Araújo, Lia Braga, Luis Carlos Castro, Rúbia Lima, Ítalo Lopes, Diego Salvador, Wladimir Cavalcante.
Música: Orquestra Filarmônica do Ceará e Uirá dos Reis
Desenhos: Yuri Yamamoto
Luz: Walter Façanha



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O Centro de Experimentação em Movimentos, ao longo de sua trajetória, tem consolidado sua experiência em pesquisa e difusão de dança contemporânea no Ceará. Desde 2003, é responsável pela manutenção do projeto Terça se Dança, em parceria com o SESC/CE; tem contribuído como articuladora da Bienal Internacional de Dança do Ceará; é proponente e realizador, de 2002 a 2006, de uma série de pesquisas em penitenciárias cearenses, o que gerou diversos espetáculos como "Identidades", "Cala-Te Corpo", "Vidas no Escuro", "Corpos e Cárceres", "Quanto Custa Uma Rosa" e "Corpos Aprisionados". Recebeu prêmios importantes como o Incentivo às Artes no Ceará (SECULT) para pesquisa em Dança e o I Edital das Artes (FUNCET) para manutenção de grupos. O CEM tem participado com afinco da cena cearense de Dança, sendo presença constante nos principais projetos da área e investido em residências artísticas, oficinas e intercâmbios.

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